Rito Ancestral Corpo Contemporâneo – Cadernos de Viagem - Grupo Totem

Rito Ancestral Corpo Contemporâneo – Cadernos de Viagem

Após vivenciarmos, nos dia 15 e 16 de agosto, o ritual O Menino do Rancho, realizado pelo povo Pankararu, ao retornar, elencamos o que da vivência poderia servir de material para a pesquisa Rito Ancestral Corpo Contemporâneo, contemplada pelo Funcultura.


Neste ritual, que durou a noite de um sábado e o dia do domingo, presenciamos a imponência dos praiás - homens com roupas específicas de palha que representam os encantados deste povo – cerca de 60 deles, em contínua dança; realizando a abertura dos terreiros, circulando ininterruptamente; junto ao público presente, foram visitados três terreiros onde era preciso buscar uma pessoa que faria parte do ritual, isto é, as que simbolizariam a noiva e duas madrinhas. Em cada terreiro visitado pelos praiás, eles dançavam em círculo, sua pisada particular, e ao final da visita uma das mulheres era agregada ao corpo dos participantes do ritual – estas eram as únicas mulheres que participavam ativamente na dança junto aos praiás, ainda que em momentos específicos; o último momento de cada dança nos terreiros era o momento do toré, onde todos, demais mulheres e visitantes poderiam dançar, sempre em dupla; no terreiro maior, já com todos os participantes, com o menino sendo carregado à frente, a dança seguia em círculo e, aos poucos, os padrinhos – demais homens do povo, destinados a proteger o menino de ser pego pelos praiás – estavam em grande número e tinham os corpos pintados, demonstravam, no centro do círculo, um jogo com uma ‘vara’ entre um deles e um praiá, onde a intenção era conseguir derrubar o outro;  os toantes – músicas – eram entoados por um cantor, sempre acompanhado pelas maracas dos praiás e das vozes deles que se somavam em determinados momentos; o alimento cuidadosamente preparado por algumas mulheres do povo fora servido à todos os presentes em tigelas de barro, a serem comidas com as mãos; já próximo ao fim do dia, a dança deu espaço à corrida dos praiás para pegar o menino, objetivo do ritual, e da luta dos padrinhos para impedir. Foram três corridas avassaladoras, em que todo o círculo era desfeito, todos se espalhavam e o menino era carregado para longe e praiás eram derrubados, num corpo a corpo com os padrinhos; por fim o menino não foi pego por nenhum praiá, a proteção serviu para que ele permanecesse como responsabilidade do dono daquele terreiro – mestre menininho - caso fosse pego, seria de responsabilidade também do encantado que o resgatasse; já à noite, os praiás seguiram a dança, fechando o terreiro e encerrando aquele ritual fascinante.


Todo o grupo ficou impregnado da poeira levantada durante todo o dia por aquela dança realizada impressionantemente por horas. Para além disso, estávamos intrigados pelo peso das roupas, o corpo em dança constante, as mãos concentradas em manter as maracas soando, a disposição para correrem após tanto tempo circulando, a beleza das figuras dos encantados presentes, o desenho realizado pelos praiás dentro do terreiro, a energia gerada, a satisfação de poder dançar com um praiá durante o toré, a curiosidade sobre o poró – espaço secreto somente frequentado por homens do povo, onde os praiás iam se recompor se revezando – a fantástica impressão de suspensão dos corpos dos praiás enquanto giravam e levantavam a poeira, principalmente à noite, entre tantas outra sensações indescritíveis.

Ao retornar, extasiados pela experiência, identificamos fatores que pudéssemos experienciar internamente. Assim sentimos a necessidade de reconhecermos nossos animais de poder, sendo estes os nossos ‘encantados’, a fim de criarmos um elo com estes. Esse foi um ponto de partida, diante da imensidão vivenciada. Outro estímulo fora a busca pela ‘alma coletiva‘ do grupo, termo que tivemos contato durante a leitura do texto ‘teatro e ritual’, que fora identificado claramente enquanto estivemos com o povo Pankararu, o real envolvimento do coletivo naquele momento. Vislumbrando as experimentações vocais que teríamos a partir do mês de setembro, a sonoridade vocal individual e em coletivo começaram a ser alimentadas. Também percebemos o jogo do praiá com a ‘vara’, sua pisada e o toré como possibilidades de aquecimento do corpo para outras atividades. Gostaríamos de desenvolver deslizamentos do corpo, descobrir possibilidades de impressão de suspensão, explorar onde o figurino poderia influenciar nisso entre outras experimentações. Os desenhos no chão do terreiro, abrir e fechar o círculo, o infinito, o espiral, a expansão a contração, como explorar, desdobrar, aprofundar. Não podíamos deixar de experimentar a fuga e a proteção, momento de grande agitação durante o menino do rancho. Tudo ainda inicial, prematuro, um vir a ser,  um processo, sementes do que seriam essas contribuições para a linguagem desenvolvida pelo grupo, o fortalecimento da ritualização, e do que ainda não podemos conceber.



Realizamos também alguns paralelos do texto ‘Performance e Antropologia’ de Richard Schechner, com o ritual vivido. Nele é dito que rituais são memórias codificadas em ações, uma forma das pessoas lembrarem. Durante o Menino do Rancho, sentimos o quanto o ritual funciona como um real ato de resistência cultural, as crianças vivenciam a memória de seus antepassados, sendo iniciados nos mistérios do povo, ações que contribuem para a compreensão de sua cultura, dos encantados, uma forma de alimentar o desejo dos pequenos de serem praiás no futuro, uma forma de lembrar e fazer permanecer. O texto também apresenta distinção entre rituais sagrados – aqueles ligados às crenças religiosas: cantos, orações, comunicações, invocações – e os rituais seculares – relacionados às cerimônias de estado, cotidiano, que não tem caráter religioso. O ritual Menino do Rancho é claramente um ritual sagrado, onde toda relação com os encantados a proteção deles a crianças às pessoas do povo, não deixando também de ser um ritual secular, socialmente necessário, uma renovação da responsabilidade que o dono do terreiro tem com o menino do rancho em questão. Schechner  também cita o termo ‘communitas’, criado por Turner para definir o sentimento de solidariedade de grupo presente no ritual, algo que o grupo pôde sentir de perto, toda a estruturação coletiva para a realização do ritual, desde o preparo da comida, ao figurino do menino, a presença dos visitantes, a comunhão no fumo, no toré e etc.



Dessa nossa experiência fica o sentimento de gratidão ao povo Pankararu, por toda recepção e acolhimento que tivemos, tão sincera e íntima, presentes que tocaram nossos corpos e corações, nos aproximando de nossas raízes, nos mostrando o ‘ponto’ onde se encontram o ritual, o teatro, a dança, a performance e a espiritualidade. Nos mostrando e nos fazendo trazer para a arte contemporânea a fonte como objetivo, através da liminaridade, a certeza da performance como ritual contemporâneo.